quinta-feira, março 29

Dos falares de um povo...

A propósito de língua, hoje decidi ir buscar a uma velha gaveta um pequeno texto que escrevi há uns anos...

O carácter mais íntimo de cada povo, a sua alma profunda, está sobretudo na sua língua.

Jules Michelet (1789-1874), historiador francês

Num período que se adivinha já bem sucedido com os milhares de pessoas que nos visitam, algumas das quais assiduamente; parece-me que deixar-lhes um tributo é o merecido prémio. Não vou tratá-las como turistas ou estrangeiros; afinal, creio que, a partir do momento que pisam esta terra, são já conterrâneas. Por isso, vejo já em ti, que me lês, um novo Homem desde o instante em que pisaste este solo que te era estranho. E, agora, que te sentes adaptado, renovado e receptivo a uma cultura peculiar, não te vou traçar um roteiro para que descubras as construções, os monumentos, as paisagens, que são belas e, estou certo que, se ainda o não fizeste, algum dia o farás: hoje, amanhã ou quando nos revisitares novamente. Não esperaremos muito tempo sem ti. Voltarás.

A obra de arte que te quero mostrar, que não é menos bela do que as anteriores, está em qualquer conversa que tenhas com um transmontano. Cada um de nós, sem saber, pode mostrar-ta. Encontrá-la-ás mais viva num velhinho, esse mesmo que está à tua frente; ou naquela velhinha que está na bancada com aquele sorriso característico de boas-vindas (e que alguns os acusam de falar mal, porque o português correcto é o que se fala em... onde tu acabas de pensar, respeito a tua opinião; mas preciso da tua sensibilidade para que possas apreciar este nosso falar) enquanto lês este boletim que decidiste recolher ou alguém to deu e folheaste-o por curiosidade. Vai lá, aborda-os e diz-lhes que te contem uma história, que te falem do fumeiro que aqui se come ou do bom vinho que se bebe. Escuta-os com atenção.

Se não foste capaz, tens outra alternativa: apura a tua audição e, enquanto passeias, repara nas palavras que se perdem entre a multidão, em conversas alheias (é-te permitido ouvi-las, a intenção é boa!). Até podes fechar os olhos, se quiseres. Escuta-as. Tchuva, sole, fai(faz), non, tchouriço, (interjeição que manifesta espanto, surpresa ou desacordo)… e tantas outras maravilhas podes escutar. Algumas palavras podes conhecer, outras haverá que possas estranhar, mas acredita que todas elas pertencem à língua que tu falas, a portuguesa. Não pertencemos todos à mesma espécie, independentemente da cor dos olhos, do cabelo ou do tom de pele? Pois bem, também a língua, internamente, diverge de forma mais ou menos evidente quanto ao vocabulário, pronúncia e mesmo gramática. Não serás indiferente ao “s” que pronuncias (permite-me dar-lhe o nome de sibilante pré-dorsodental surda) e ao destas gentes (sibilante ápico-alveolar surda), ao teu “ch” (fricativa palatal) e ao outro que escutas (“tch” – africada palatal), ou mesmo aos ditongos ou à neutralização da oposição entre o “v” e “b”, que, independentemente da grafia, se vocalizam da mesma forma. Cada um destes traços tornam-nos únicos e deliciam-nos. Também aos outros dialectos mais ou menos setentrionais, mais ou menos centro-meridionais que caracterizam o norte, o sul, o este e o oeste de Portugal.

Não alimentemos, portanto, a falsa ideia de “falar melhor” e “falar pior”, para podermos manter um património que se confunde com as nossas origens: o linguístico. Não confundamos o que se pode considerar a norma e o que é normal, palavras bem distintas. Diríamos que a norma equivaleria a uma língua-padrão, falada por um grupo mais ou menos culto, situada na região Lisboa-Coimbra, que não será nem mais nem menos normal que a língua que escutas nesta terra que pisas.

Não exijo mais o teu tempo, tão somente te peço que pares um momento e escutes: é o nosso falar, que se extingue já como uma chama, mas ainda aquece o coração de quem o escuta. Aquece-te.

Novembro 2007


terça-feira, março 20

Somos... e sabemos...


Um destes dias, quando prometia a uma amiga que havia de escrever sobre o festival, não o fiz de forma consciente...
Sempre ficamos atordoados quando temos a possibilidade de partilharmos um espaço com vozes que, por algum motivo, ecoam cá e lá fora... e cá dentro.Não é difícil perceber, para quem se perde facilmente nas palavras dos outros, escritas ou faladas,que há leitores tresmalhados como eu. Perdem-se, assim, sem mais...
Mas, mesmo perdido, poderia dizer que me alimentaram a tal "tensão" geradora (nomeada por Fernando Pinto do Amaral numa das suas sempre pacíficas intervenções), que me fez esboçar este texto que, por falta de tempo, guardei na gaveta à espera de um dia de sol e silêncio.
Hoje foi o dia. Lá fora, a tarde amena convidou-me para um café na esplanada de quase sempre.
Reli o pouco que escrevera:
Éramos pobres, violentos, piegas e originais... e não sabíamos! E agora? Continuamos pobres, violentos, piegas e originais, mas mais conscientes? Não creio! Aumentámos a nossa pobreza, a nossa violência, com mais pieguice, menos originalidade, e excessiva inconsciência. E não me parece que esteja a ser exagerado!
Mas nunca admitirei que somos naturalmente pobres. E se o somos, é porque, naturalmente, nos rendemos a um comodismo doentio e epidémico, acompanhado de uma inércia ridícula, que ameaça tornar-se uma característica genética, nossa, portuguesa! Cuidado: os trapos que vestimos e fazem de nós pobres podem virar vísceras!
Entretanto, o sol escondeu-se e acinzentou-me o céu e o papel. E recolhi-me.