sábado, janeiro 2

3.[o segredo]

[o segredo]

emudecera para o mundo à nascença. o grito esperado nunca aconteceu. o médico, contava-lhe a mãe sempre que renascia, não esperava dele senão a morte. pariu-o logo depois da meia-noite: pouco mais de dois quilos de ossos prematuros, arrancados de um ventre quase seco a ferros. depois veio o suspiro. ainda hoje se sentia assim, quase morto. deus privara-o do verbo para o arredar do mundo, pensava. não lhe saía pela boca absolutamente nada. era uma espécie de buraco negro sem fundo: absorvia o mundo e, já do lado de dentro, era o seu segredo, e de deus. não podia dizer nada, alimentava-se do que via e sentia, mas sempre em silêncio. sentiam-no quando pegava nos talheres e, às vezes, quando pousava de forma desajeitada o copo na mesa. de resto, andava pela casa como se fosse um fantasma. existia quando o chamavam e, na rua, porque não lhe esperavam qualquer resposta, olhavam-no apenas. tristes, pensava. enquanto ele guardava tudo para si, os demais pareciam-lhe tão vazios. passavam pelas coisas de modo aligeirado, com pressa de as sentir e ainda com mais pressa de dizer que as sentiam. e, porque entre o sentir  e o dizer o tempo era tão curto, tudo lhe parecia mentira. talvez fossem as palavras que os esvaziavam. dizê-las ou escrevê-las. talvez tudo o que se dissesse e escrevesse fosse mentira, e a verdade fosse muda, como o seu segredo.