terça-feira, fevereiro 7

excerto de uma criação poética ou literatura no feminino

Na ausência de palavras, a lembrar também o modo como escrevia Lispector, decidi transcrever um excerto de uma carta de Gabriela Mistral. O meu encontro foi premeditado e, a morrer de amores por cada uma das suas palavras, quis partilhá-la convosco. Aceitem-na.
Escrevo sobre os joelhos e a escrivaninha nunca me serviu para nada, nem no Chile, nem em Paris, nem em Lisboa.
Escrevo de manhã ou de noite, e a tarde nunca me deu inspiração, sem que eu entenda a razão da sua esterilidade ou dessa má vontade para mim.
Creio nunca ter escrito um verso num quarto fechado ou cujas janelas dessem para uma horrível parede; afirmo-me sempre num pedaço de céu, que o Chile me deu azul e a Europa me dá manchado. Melhoram os meus humores quando fixo os velhos olhos num grupo de árvores.
Enquanto fui criatura estável da minha raça e do meu país, escrevi o que eu vi ou tinha mais próximo, na carne quente do assunto. Desde que sou criatura vagabunda, desterrada voluntária, parece que só escrevo no meio de uma emanação de fantasmas. A terra da América e a minha gente, viva ou morta, tornaram-se-me um cortejo melancólico mas muito fiel que, mais do que me envolver, me forra e me oprime e raras vezes me deixa ver a paisagem e a gente estrangeiras. Escrevo em geral sem pressas, mas de outras vezes com uma rapidez vertical de avalancha de pedras na Cordilheira. Irrita-me em todo o caso interromper, tendo sempre ao lado quatro ou cinco lápis afiados, porque sou bastante preguiçosa e gosto que me dêem tudo pronto, excepto os verso.
No tempo em que batalhava com a língua, exigindo-lhe intensidade, costumava ouvir enquanto escrevia um colérico ranger de dentes, o rangido da lixa sobre o frio rombo do idioma.

1 Comments:

At segunda-feira, 08 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Fico-te sinceramente grato por teres partilhado comigo as até agora desconhecidas palavras de Gabriela Mistral. São dela, não tuas, razão por que não valerá a pena comentá-las. Valorizo antes o efeito provocado em ti e na tua sensibilidade e compreendo agora porque te deixaste "morrer de amores por cada uma das suas palavras". Se assim o sentes, é porque te identificas certamente com o seu pensar e sentir. Escreverás tu também "sobre os joelhos"? "de manhã ou de noite"? Deixar-te-ás seduzir por "um grupo de árvores" que te melhoram os humores? Conheço-te muito pouco, mas estou convicto da reposta - eis a tua sensibilidade!

 

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