segunda-feira, dezembro 30

do sentir dos dias ou feliz ano novo

renasceria com o ano novo, fizera essa promessa. sentia cada ano como uma nova pele que lhe permitiria recolher o mundo de outra forma. não era mais o mesmo: ele e o mundo. diziam que era mais sábio nas palavras e nos gestos. diziam também que mais experiente. largava-se da alma e fazia-se só corpo e por dentro o vazio que receberia o início, o durante e o fim de cada um dos trezentos e sessenta e cinco dias do novo ano. era assim, previa-se a si e à sua fome do mundo para esburacar-se e ganhar sítio adentro. tocariam as doze badaladas e, em cima de uma cadeira, engoliria doze uvas passas de desejos a cumprir. secretos para que pudessem virar destino. silêncio a consenti-los. sentidos.



domingo, dezembro 22

postal de natal


Sentou-se para escrever um postal de natal. pegou na caneta e, antes de desenhar qualquer letra, quase como se tratasse de um prelúdio, esboçou um breve sorriso. lembranças de infância entorpeceram-lhe os sentidos. manhãs frias de inverno entretidas com risos de irmãos, de sobrinhos e de primos, ofereciam-lhes o musgo aveludado que haviam de carregar no carrinho de mão até casa para acomodar o presépio e servir de tapete à árvore de natal. gastavam assim um dia, a construir um mundo… aquele mundo, que cabia num hall de entrada de tão minúsculo que era. perfeito. pretérito. pretérito que, de tão perfeito, findara. como se apenas o imperfeito fosse inacabado e se pudesse prolongar no tempo. olhou pela janela. o céu escurecera mais cedo. escolhera para os amigos o dia mais pequeno do ano. amigo imperfeito. cantarolou, enquanto ouvia uma musiquinha de natal, seguiu-se-lhe um suspiro grave que lhe esvaziou a alma e escreveu 22 de dezembro. 




quarta-feira, dezembro 11

do nascimento ou da morte

Ontem nasceu clarice, dia 10 de dezembro. no dia anterior, morreu. quem a leu e lê, sabe que a escritora é antiga, absoluta: ressuscita-nos enquanto lemos e experimentamos a miséria das suas personagens que, já inicialmente, anunciam uma morte, se não física, para o mundo. vão morrendo, aos poucos. retirantes, primeiro, corroem-se-lhes as entranhas, analfabetas e incapazes de se darem ao mundo - são silêncio por fora - porque parcas são as palavras e insuficientes para que alguém as ouça e entenda. só o leitor. esse, sim. invade-as, reencarna-as e num instante, epifânico, transforma-se nessa quase gente. ao ler, é. clarice foi assim, antes de nascer já havia morrido, como as suas personagens. entristecia por dentro e, ao mesmo tempo, definhava, escurecia. era letra preta em papel branco. morte e vida. 

ontem, escureceu. hoje é noite, chuva  e vento lá fora. escureço também e penso que a natureza recorda clarice,  como eu, porque entristeceu e ainda chora entre soluços. cá dentro ouço-a, a noite, macabéa sem (a hora da) estrelas.